
Incrível como o Marajó fez-me ter histórias pra contar! Tantas são as Crônicas do Marajó!
Pois estes casos aconteceram no Juizado Especial Criminal em Breves, no Marajó. Toda a quarta-feira tinha audiência criminal no juizado, que trata dos delitos de menor potencial ofensivo, como brigas sem maiores conseqüências, desacatos, e ameaças. Pois é, ameaças. Essas acontecem muito.
Só que ameaça para ser ameaça com “status" de crime, tem o elemento “medo”; ou seja, se a vítima não sentiu “medo”, não temer que a ameaça venha a realizar-se, não há crime. Não adianta ser aquela coisa de “tu vai ver só”, em que nem mesmo quem fala acredita que o ameaçado vá sentir-se ameaçado, com o perdão da redundância.
Foi o caso da Tonha com a Augustinha!
Tonha era uma mulher grande! Não era apenas gorda. Era grande! E tinha cara de braba. Já a Augustinha era chamada assim, no diminutivo porque era uma mulher pequena, franzina. Vi que o caso era ameaça, e, assim que as duas sentaram uma em cada lado da mesa, fui logo falando pra Tonha:
— O que houve, D. Tonha, que a senhora andou proferindo ameaças?
— Não ameacei ninguém, doutor. Foi ela (e apontou com o beiço para Augustinha) que disse que vou pegar porrada.
— Hein?
— Essa uma aí, já, doutor! “Disk” se me pegar olhando pro marido dela de novo, vou pegar muita porrada.”
Augustinha quieta, não falava nada. Ficava ali, olhando pra mesa, com uma expressão de “eu choro, não” (expressão equivalente a “tô nem aí”).
Vendo o tamanho (ou a falta de) da Augustinha, e a sobra de tamanho que havia na Tonha, perguntei:
— E a senhora está com medo de que lhe aconteça alguma coisa?
— Mas quaaaaaando! Isso aí (apontou com o beiço pra Augustinha) vai dar porrada em alguém, doutor?! Medo nada! Tô é com pena dessa infeliz!
Ora, ali mesmo, encerrei o processo, porque sem impor temor de algum mal injusto, não se caracteriza ameaça!
Mas nem todo o caso era assim. Algumas vezes encontrei uns que eram bons de ameaça! Por exemplo, o “Botóquis” (estava escrito assim o apelido no Termo Circunstanciado). O Botóquis era o tipo de sujeito que não levava desaforo pra casa. E, para ele, um outro homem qualquer dançar com alguma moça que tinha recusado dançar com ele na festa, era um desaforo grande. E como o Botóquis estava muito longe de ser um deus grego, era fácil ser recusado. Daí, que o pessoal, quando via que o Botóquis estava na festa, cuidava para ver com que mulher ele iria falar. Por via das dúvidas, se a mulher chegou perto do Botóquis e saiu, mesmo que para ir no banheiro, nenhum homem mais falava com a pobre moça... Mas sempre havia um desavisado qualquer, um recém chegado na cidade, que não sabia da história ou que ja tinha bebido o tanto necessário para não lembrar mais com quem o Botóquis havia tentado falar e levou o fora! Daí, coitado do caboclo! Se o Botóquis pegava o cara, batia. Mas batia muuuuuito! Veio daí o apelido: dizem que depois de uma surra do Botóquis, o caboclo somente ficava com a cara desamassada com muito botox! Se o caboclo via o Botóquis olhando meio que por baixo da aba do boné que usava, estava marcado! Só aquele olhar, já era uma ameaça. E ninguém nem cogitava em não ficar com medo!
Outra que era boa de ameaça era D. Mocinha, que de mocinha nada tinha.
Pois assim foi o caso! Feito o pregão, entrou como autora do fato (quem fez a ameaça), a D. Mocinha! (“Mocinha” era o primeiro nome MESMO daquela senhora). Eu me assustei quando vi. Acho que nunca tinha visto um rosto tão enrugado! Entrou com passo firme, o que estranhei, porque pelo rosto tão enrugado e meio curvada pra frente, pensei que estivesse já beirando os 70 anos. A vítima, entretanto, era uma mulher nova em relação a ela, aparentava ter uns 40 anos, um pouco mais um pouco menos.
A história era que D. Mocinha tinha uma pequena fruteira e empregava seu neto, a quem D. Mocinha prometera fazer Padre, se nascesse com vida, porque houve complicação no parto realizado no barco que trazia a nora gestante do interior para o hospital da cidade. A nora faleceu no parto, mas salvou-se o neto, criado por D. Mocinha, e prometido ao celibato da vida sacerdotal! Daí, quando ia alguma morena na fruteira, e demorava mais que um instante falando com o neto, D. Mocinha já achava que era o diabo em forma de mulher querendo desencaminhar o neto. Pegava uma faca comprida e saía correndo atrás da dita cuja, ameaçando furar. Dizem que em Breves tem umas três ou quatro com furos de D. Mocinha. Mas aquela era a primeira vez que alguma teve coragem de comunicar na delegacia.
Pois aquela vítima que estava ali era mais uma entre tantas que dizem que D. Mocinha ameaçava. Confesso que olhando para aquela criatura pequenina e já com o peso de tantos anos nas costas, e marcado em seu próprio rosto, eu estava torcendo para não ser verdade; ou para que houvesse uma proposta leve do Ministério Público que D. Mocinha acatasse e se visse livre. Perguntei:
— Mas a senhora ameaçou mesmo a vítima, D. Mocinha? — E torci para que ela negasse e a vítima, dadas às circunstâncias, fosse no mesmo caminho. Mas que nada:
— Ameacei não, doutor! Eu PROMETI essa quenga! Foi PROMESSA! Vou furar essa rapariga que quer desencaminhar meu neto santo.
O resultado é que não houve jeito! Não teve entendimento e nem D. Mocinha aceitou nada do que propôs o Promotor, por mais brando que fosse! Daí falei:
— D. Mocinha, a essa altura da sua vida, a senhora ainda vai querer se incomodar com um processo? Por que não aceita a proposta do Ministério Público?
— Não sou mulher de aceitar favor, doutor. Vivi até aqui, com o suor do meu trabalho! E ainda tenho muito a fazer nesse mundo! Inclusive furar essa quenga se ela vier com saliência para tirar meu neto do caminho de ser santo!
Muito, muito, a fazer nesse mundo eu até achava que não tinha, porque acho que ela já estava mais ou menos no limite da expectativa de vida da região. Fiquei curioso, claro, pela idade que teria. Para matar minha curiosidade, pedi a célula de identidade de D. Mocinha, com a desculpa de que precisava registrar o número do documento na ata da audiência; ela prontamente pegou uma sacola plástica toda enroladinha e de dentro tirou a célula e estendeu-me! Não consegui disfarçar o susto:
— Mas a senhora tem 51 anos, D. Mocinha? — Exclamei.
— Pois é doutor. Sei que não parece.
Depois de ela ter dito isso, eu até hoje agradeço por nesse momento ter falado apenas:
— Pois é…
Porque D. Mocinha arrematou:
— Mas isso é porque me cuido, doutor, não sou como essas raparigas de hoje que experimentam tudo que é porcaria e se estragam cedo!
…
Acho que na hora pensei: será que o Botóquis já tinha batido na D. Mocinha?!
Luís Menna Barreto, em 15 de julho de 2016
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