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O Juiz, a Sesta e a Hora do Almoço

Foto do escritor: luís menna barretoluís menna barreto

Atualizado: 16 de fev.

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(Silêncio)…


Estás vendo esses pontinhos todos aí em cima? É meu jeito de descrever o silêncio!

É difícil descrever o silêncio! Fosse um roteiro, eu descreveria mais ou menos assim: “CENA 1. EXT: CIDADE ADORMECIDA. CACHORRO ENCOSTADO NA PORTA DO BAR DO S. NONÔ, SOB O TOLDO. CABOCLO ADORMECIDO NA REDE PENDURADA SOB A ÁRVORE. MESA DE BILHAR DO AÇOUGUE DO RETALHO COM AS BOLAS PARADAS SOBRE O FELTRO VERDE JÁ BASTANTE SURRADO E OS TACOS CRUZADOS SOBRE A MESA. FOLHA DAS ÁRVORES PARADAS. MURURÉ NO RIO, PASSANDO LENTO.”

A cena acima rodaria sem trilha sonora alguma. As pessoas entenderiam que tudo estava em silêncio (eu acho!). Mas, como é uma crônica, fica difícil descrever o silêncio. Mas era assim que estava a cidade, na beira do rio. Até os pássaros estavam adormecidos. Nem barulho de pô-pô-pô havia! (Ah, “pô-pô-pôs”, são pequenos barquinhos que fazem um barulho bem alto, semelhante a… “pô-pô-pô”!!). Eu estava saindo do fórum, e só uns instantes de caminhada, já me deixaram suado. Não, não se tratava de uma noite quente e eu não estava trabalhando na madrugada. Eram 2 horas… da tarde! 

Isso mesmo! Tem lugares no Marajó, que entre 12 e 16 horas, nada funciona. Nem as pessoas. Não há notícia sequer de roubo, furto e, menos ainda de agressão e tentativa de homicídio, na cidade, nesse horário! (Sim, especialmente tentativa de homicídio ou mesmo homicídio, porque, como eu já falei em capítulos anteriores, eu achei lindo o salão do júri e estava pesquisando os processos, para descobrir algum de homicídio ou tentativa de homicídio - ou qualquer “crime doloso contra a vida”, porque queria realmente fazer um júri. Já havia até mesmo pensado em pedir um provimento de fundos para o Tribunal para reformar o salão do júri, quem sabe colocar ar condicionado…).

Eram ainda, minhas primeiras semanas ali, dias depois do episódio da “visagem" no fórum, onde eu acho que fui enrolado em cinquenta reais pela Socorro Rezadeira*…

Enfim, eu estava descobrindo que a cidade simplesmente adormecia entre 12 e 16 horas. O comércio realmente fechava! Depois, abria as 16 horas e ia direto até perto de 21 horas.  

Todos os dias anteriores, eu havia almoçado em uma pequena cozinha no fórum. Antes de eu ir para lá, assumir a titularidade da comarca, eu liguei para perguntar algumas coisas que eu achava importante saber. Daí, sobre comida, disseram-me que serviam almoço no bar do Seu Nonô, ou eu poderia comer no fórum, porque o pessoal recolhia dinheiro uma vez por semana e  D. Boneca e a Dos Sonhos preparavam almoço.

O problema é que logo no terceiro dia, quiseram agradar-me, eu acho… e fizeram uma fritada enorme de camarão! E olha… enormes (que depois eu viria a saber que são chamados de “escolhidos”). Cheguei na cozinha e havia uma panela generosa de camarão e ao lado uma jarra imensa com açaí. Arregalei os olhos. Estava linda a mesa. Eu tenho certeza que eu me esbaldaria comendo, se não fosse por um pequenino detalhe: tenho alergia à camarão. E ainda não me havia acostumado com o açaí. Daí, que inventei uma desculpa qualquer (o que é sempre constrangedor) e pensei em ir no bar do S. Nonô.

Voltei para o gabinete e fiquei entretido pesquisando processos criminais, na esperança de achar algum de homicídio e, quando vi, eram 14 horas. O pessoal indo embora do Fórum de barriga cheia e eu de barriga vazia a caminho do bar do S. Nonô para dar jeito na minha fome. Como eu descobriria mais tarde sobre o vocabulário paraense, eu estava “brocado”! No caminho de dois quarteirões pequenos, um ocupado pelo Fórum e Câmara Municipal e o outro pela loja do Mariposa que é colada ao bar do Seu Nonô, com a diferença que o bar, sendo na esquina, fica com a frente para a outra rua, tendo a Igreja  e a praça da Igreja na frente, não encontrei uma alma viva… quer dizer… uma encontrei, quando estava saindo do Fórum, mas naquela ocasião, nem sabia se estava viva, porque o caboclo estava pendurado em uma rede no coreto da praça, de um jeito que parecia morto! Muito tempo depois, descobri que se tratava do Mochila**!

O bar estava aberto, mas não havia ninguém. Procurei algo pra chamar, uma campainha qualquer, e não encontrei nada. Então usei o universal chamado da tosse falsa: 

“crrf, crrf"… Nada. 

— Oi…?. — Nada.

— OLÁ… — Assim, em maiúsculas, um “semi-grito”! Nada. 

Apelei: bati palmas, quase me sentindo culpado por fazer algum barulho naquele silêncio todo! Do jeito que a cidade estava quieta, acho que ouvi até o eco das minhas palmas!

… esperei. Ouvi um barulhinho fraco, como de pés sendo enfiados em chinelos e depois se arrastando. Apareceu, por trás da cortina de pano, com uma preguiça até no falar, o Seu Nonô. 

Ele me perguntou, sem palavras, com aquele gesto de levantar o queixo, o que eu queria. Acho que era uma espécie de “respeito com o silêncio”, como se fosse uma falta de ética romper o silêncio com palavras naquele horário!

— Boa tarde!, — eu disse faceiro!

… esperei uma resposta, mas veio um suspiro e um olho mais aberto que o outro, como se ele guardasse um dos olhos descansando, afinal, para quê fazer os dois olhos trabalharem naquela hora, né?

— Posso almoçar? — Perguntei, ainda empolgado e com um sorriso, daqueles que quem quer ser bem recebido nos primeiros dias em uma cidade nova, sempre faz!

O olho que estava mais fechado abriu, e, quando ficaram ambos abertos do mesmo tamanho, a testa dele enrugou e o rosto virou um pouco pro lado. Na hora, entendi que aquele gesto era o mais perto do que seria meu “hein?”.

Com a empolgação diminuída, ainda tentei insistir em um tom bem baixinho, já com culpa por estar falando:

— … posso almoçar…?

E a resposta veio franca, simples, quase direta: 

— Pode… amanhã!.

Nem esperou mais nada, virou-se num movimento meio em câmera lenta e o único barulho que se podia ouvir era o do arrastar dos chinelos sumindo atrás da cortina de pano, novamente. Fiquei ali, com minha cara de “e agora?”, e lembrei que havia visto um pequeno comércio com uns pacotes de bolachas quase solitários em uma prateleira que, embora pequena, ficava grande demais com poucos produtos espalhados aqui e ali. Prometi a mim mesmo que voltaria lá, iria comprar as bolachas e resistiria à tentação de olhar o prazo de validade!

Mais três pequenos quarteirões de suor no sentido contrário… e fechado! 

Olhei em volta. Parecia madrugada… só que com sol!

Desisti. Decidi ir para casa que aluguei, um quarto, sala e banheiro nos altos de uma espécie de depósito do tamanho de uma garagem pequena, e tentar dormir um pouco, também. 

Era perto de 15 horas quando cheguei em casa, depois das tentativas frustradas de almoçar. Como eu estava já bem suado (ou “breado" como aprendi depois), resolvi tomar um banho. E descobri que foi um erro! A água estava quente… muito quente! Saí mais suado e descobri que banho naquele horário também era proibitivo.

Coloquei o ventilador no mais forte e me deitei na frente dele… e o vento era quente! Quando finalmente comecei a relaxar:

“AMÉM?” (Assim, em maiúsculas porque foi meio gritado mesmo!). 

— Hein? — O “amém” não foi meu; o "hein", foi!

“VOCÊ QUE TÁ ACORDANDO AGORA, VOCÊ QUE TÁ COM PROBLEMA, VOCÊ QUE TÁ COM DÍVIDA, VEM! É HOJE O CULTO DO MILAGRE! VEM PRA CURA…” O barulho parecia de uma caixa de som meio velha. Tomei um susto. Mas estava claro que era alguma caixa de som. Daí que achei que era alguém passando na rua de bicicleta, ou coisa assim. Nem bicicleta, nem passando, nem coisa assim!

“… TRAGA SUA ANGÚSTIA, TRAGA SUA DOR, TRAGA SEU PEDIDO…”

A voz era rasgada e aflita. Parecia de alguém que estava narrando um jogo muito movimentado.

Fiquei irritado. Mas achei que ninguém iria conseguir gritar daquele jeito por muito tempo.  Não com o calor que fazia. Daí, resolvi esperar um pouco. Quando passou de meia hora, não aguentei mais. Comecei a vestir-me novamente, e decidi procurar o gritador. Quando eu estava à caminho da porta, silêncio de repente!

Olhei para um lado e outro, e nada. Não vi ninguém. Nem uma caixa de som pelas calçadas, nem uma porta aberta que parecesse um templo. Fiquei intrigado, mas, enfim, eu já havia perdido meu momento de descanso e estava com fome. Daí que notei que parecia que começava algum movimento pela rua. 

Tive a impressão que estava amanhecendo, porque as pessoas estavam como que despertando com preguiça e até o sol estava baixo, perto do rio… só que era um amanhecer à tarde! 

Consegui comprar os dois únicos pacotes de bolacha que encontrei, e, com eu havia prometido a mim mesmo, não olhei a data de validade. Foram meu almoço e jantar daquele dia.

No dia seguinte, fiquei esperto. Cedo quando cheguei, pedi para o Goela ver qual seria o almoço.

— Camarão com açaí, doutor. Sobrou de ontem.

Novamente com uma desculpa, dispensei o almoço e fiquei controlando o horário. Sairia pouco antes do meio dia para almoçar e compensaria voltando à tarde.

Assim eu fiz. Saí uns dez minutos antes do meio dia. Dava pra ver uma certa agitação na rua, tanto quanto existe na hora do fechamento do comércio em qualquer cidade. Só que com a diferença que ali era meio dia e só abriria novamente 16 horas. Vi o mesmo caboclo atando a rede no coreto novamente, e descobri, então, que estava vivo!

Mas agora… ah, agora eu estava me sentindo esperto! Verifiquei com antecedência o almoço no Fórum e saí a tempo de almoçar no bar do S. Nonô.

Entrei no bar e cumprimentei o S. Nonô como se fosse um velho conhecido, afinal, no dia anterior nós batemos aquele longo papo de uma frase para cada um. E na semana anterior, ele me contou o caso do Bento (a "visagem", lembram?)! Já me sentia íntimo!

— Hoje tem almoço, S. Nonô?

— Tem. Mas só o prato do dia.

— Pois traga. E uma garrafa de água com gás.

Na parte do “com gás”, ele subiu uma sobrancelha. Então, eu refiz o pedido:

— Uma água. Com ou sem gás.

Foram dois dias sem almoço. Mas uma semana de precioso aprendizado. Quando fui em Belém, no final de semana seguinte (12 horas de barco para ir e 12 horas de barco para voltar), eu trouxe um bom abastecimento de mantimentos, incluindo muitos enlatados e gêneros para microondas.

O prato do dia, no S. Nonô, era camarão!


12 de setembro de 2017



 

*Vide as crônicas "O Fechadura, a Audiência e a Visagem" (partes 1 e 2).


**O Mochila, apesar de ter aparecido apenas em poucas crônicas, ou poucos capítulos da Novela Literâria As "Crônicas do Marajó" (inédita, ainda... espero que por pouco tempo), é um personagem muito querido, cujo epitáfio, é um dos textos mais lidos e bem avaliados pelos leitores da nossa página do blogspot... em breve, todos os capítulos do Mochila e também seu epitáfio, estarão publicados aqui na nossa nova casa!

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