
Eu já atirei pedra no cachorro da pata torta*(1). Vários garotos já atiraram… isso foi antes do cachorro ficar com o velho Muleta, que todo dia sentava no banco da praça, à tarde.
Quando o cachorro aparecia na praça, perto do parquinho, o Ranho*(2) era o primeiro a pegar pedras “pra” atirar nele. Até paravam as brincadeiras de atirar pedrinha no Uálquim, “pra” todos correrem atrás do pata torta, tentando acertar ele. O Pilha ia junto, mas eu sei que ele não jogava pedra no pata torta. Eu sei que o Pilha jogava sempre a pedra perto do pata torta de propósito, “pra” fazer ele sair correndo antes que eu ou outro garoto acertasse ele. O Pilha às vezes parece burro, não entende como é a brincadeira, e faz errado. A brincadeira de atirar pedra no Uálquim*(3), também foi Pilha que estragou. Ele se meteu na frente das pedrinhas dos garotos e começou atirar de volta. Agora, as cutucadoras de celular que levam os garotos no parquinho, nem deixam mais atirar pedrinha no Uálquim. Daí, só tinha o cachorro pata torta “pra” gente atirar pedras, mas o Pilha sempre atrapalhava.
Até que o velho Muleta acabou ficando com o pata torta e não deixou mais ninguém atirar pedra. Não entendi o dia que o Pilha ficou feliz que os garotos levaram xingada do velho por atirar pedra, e o pata torta foi “pra” baixo do banco em que o Muleta “tava”.
Eu acho é engraçado que o velho Muleta que tem uma perna curtinha, tem um cachorro igual ele, de pata torta!
O Pilha acha menos engraçado, porque quando ele vê os dois, ele não dá risada como eu e aqueles garotos ricos do parquinho. Ele sorri, só. Eu acho o Pilha muito inteligente, mas tem coisa que ele não entende muito, coisa que ele é burro.
No dia que o Ranho e outro garoto atropelaram o pata torta*(4) e ele ficou preso na roda, o Pilha pulou lá do galho altão da nossa árvore e saiu correndo “pra” lá. Mas antes dele chegar, a surda do coco enrolou o pata torta num pano e tirou ele da roda. Depois saiu correndo com o pata torta e o velho Muleta saiu tentando correr de muleta atrás deles.
Levou um tempão “pra” gente ver os dois na praça, de novo. E depois de um tempo, o velho Muleta não veio nunca mais. Acho que ele se mudou e deu o pata torta “pra” uma velha que conversava com ele depois do atropelamento. Acho que ela é a mãe da surda da barraca de coco. Ela fica ali, sentada onde o Muleta sentava, e o pata torta vem e vai com ela. Mas nenhum dos garotos joga mais pedra no pata torta.
Daí, outro dia, a gente “tava” na nossa árvore, e vimos os garotos juntando pedras de novo. E a gente não entendeu direito, porque a velha com o pata torta nem “tava” lá, e nem foram para o lado do Uálquim. Os garotos correram “pro” meio da pracinha. Dai que eu e o Pilha vimos um gato com um pelo todo feio, meio cinza, que o Pilha diz que é branco, sair disparado do meio do canteiro de flores perto do balanço. Eu acho que o Pilha “tava” com saudade de brincar de jogar pedras, porque ele deu o pulão do galho alto e já foi juntar uma pedra. Daí eu desci da árvore também, bem ligeiro (eu não pulo como o Pilha, eu tenho medo) e peguei umas pedras… mas o Pilha atirou uma de longe, por cima dos garotos e a pedra estourou numa árvore! Os garotos levaram o maior susto, e as cutucadoras de celular saíram correndo e xingando o Pilha. Daí eu e o Pilha fugimos, claro!
Eu fiquei brabo, porque o Pilha estragou a brincadeira outra vez!
— Ei, Pilha, “tu é” muito burro “pra” essas brincadeiras de atirar pedra!
— Que burro o quê, mané?!
— Claro que é Pilha! Era “pra” acertar naquele gato ralado, e “tu joga” nos garotos! Ainda bem que “tu errou”!
— Eu não errei, mané!
— Mas “tu queria” acertar a árvore? Que graça tem se a árvore nem se mexe! Daí fica fácil! Era “pra” acertar o gato!
— Por quê?
— Porque ele foge, é engraçado, oras!
Daí, o Pilha parou e fez aquela cara de quando parece que ele quer e não quer dizer alguma coisa ao mesmo tempo. Então, eu já sei que vem uma coisa nada a ver, ou que eu não vou entender.
— A gente é igual aquele gato, mané…
E eu não entendi nada mesmo. Mas parece que quando o Pilha fala assim, ele fica triste. Então, eu só fico quieto com ele. Acho que quando a gente é amigo, mesmo que a gente não saiba por quê, a gente fica triste junto com o amigo.
…
No outro dia, a gente foi no parquinho e não viu o gato ralado. Os garotos que as cutucadoras de celular levam, tinham feito um montinho de pedras cada um, mas não apareceu o gato. Eu e o Pilha ficamos na nossa árvore. Ele ficou olhando lá de cima, do galho alto que eu tenho medo. Ficava olhando “pra tudo” que é lado. O Pilha “tava” estranho.
No outro dia, quando eu “tava” indo trabalhar, eu vi o gato ralado. Ele “tava” jogado perto de um bueiro na rua do valo grande no meio. Acho que tava “morrido”, lá. O pelo dele, que já era todo sujo, agora “tava” mais sujo ainda, e misturado com sangue.
Quando cheguei, contei “pro” Pilha.
— Ei, Pilha, acho que alguém conseguiu acertar em cheio uma pedrada no Ralado. Acho que vi ele “morrido”.
— Onde, mané? — O Pilha ficou agitado.
— Eeeh, Pilha, nem adianta querer ir, que acho que ele tá “morrido”, nem adianta ir atrás pra tacar pedra.
— Onde?
Eu falei. Daí, o Pilha disse “pra” eu ficar trabalhando, porque se a gente não cuida da nossa sinaleira, vem outros e pegam! Eu tenho medo de ficar sozinho, porque sou pequeno, e se vem algum grandão, eu não sou corajoso como o Pilha “pra” brigar. Mas fiquei. O Pilha saiu igual foguete (porque foguete é rápido, né? Eu falo isso, mas “nem nunca” vi)!
O Pilha demorou, naquele dia. Quando voltou, eu já tava cheirando minha esponja com cola, porque já até tinha passado da hora da gente tentar achar alguma coisa pra comer, nos estacionamentos das lanchonetes. Ele “tava” com uma cara triste. Depois, passou o dia todo meio triste. Dava “pra” ver que ele fazia força “pra” sorrir nas janelas dos carros. Porque ele mesmo ensinou que rico não gosta de criança triste. E é verdade! A gente ganha mais moedas, quando chega sorrindo e quando conversa!
Acho que foi a primeira vez que eu consegui ganhar mais que o Pilha. Naquele dia, o Pilha saiu mais cedo e disse que a gente se encontrava no parquinho! E nos outros dias mais “pra” frente também foi assim. O Pilha chegando atrasado e saindo correndo. E eu vi que o Pilha andava cheirando mais cola, antes do nosso horário de ter fome. Porque a gente sempre começa a cheirar nossa esponja, quando dá fome, e daí, quando a gente consegue comida, a gente não cheira mais. Foi o Pilha que me ensinou que esse cheiro matava a fome. Mas ele começou a cheirar mais vezes. Eu não perguntei, porque acho que ele andava mais triste. Será que esse cheiro é bom “pra” quem tá triste também?
Nesses dias, eu “tava” ficando mais um pouco na sinaleira, depois ia e encontrava ele lá no parquinho, e ele já “tava” lá em cima, bem no altão da árvore. Quase não dava “pra” ver pelo meio das folhas.
— Ei Pilha… tá virando macaco?! O que “tu tanto faz” aí em cima?
— Que mané macaco?! Peraí, que já desço.
Mas ele demorava. Parecia que “tava” mexendo em alguma coisa por lá, mas não dava “pra ver”.
Até que teve um dia, que em vez de ir cedo “pro sinal” eu resolvi ir lá no parquinho. Então, eu subi até onde sempre subia e tentei ver se tinha alguma coisa lá no alto. Parecia ter, mas eu não conseguia ver direito. Daí, eu rezei “pro” São Jorge me dar coragem e se pudesse, me proteger, que eu ia subir e ver o que era. Eu não gosto de ficar pedindo “pro” São Jorge, porque ele já me salvou duas vezes*(5)… e eu não quero ficar gastando meu pedidos com ele por qualquer coisa, porque tenho medo de um dia precisar e ele ficar com saco cheio de mim! Mas dessa vez eu pedi, porque queria ver o que “tava” fazendo o Pilha ficar tanto tempo fora do trabalho.
Eu fui subindo louco de medo. Mas fui. Quase me arrependi, mas não podia desistir, porque já tinha pedido “pro” São Jorge, e muito pior era eu desistir se ele me ouviu pedir, né? Daí que ele não me ajudava mais, mesmo Então, eu consegui. Levei um tempão! Eu “tava” daquele jeito que parece que a gente vai vomitar o coração, porque ele meio que sobe e fica batendo no pescoço da gente! Quando passei da metade do caminho, deu “pra” pra ver uma caixa de papelão. “Tava” bem escondida nas folhas e parecia bem presa nos galhos. Fiquei muito curioso! Até que cheguei lá. Assim que consegui olhar dentro da caixa, peguei um susto que quase caio!
Primeiro a caixa se mexeu, depois um barulho que parecia quando a gente risca um fósforo… e então eu vi o Ralado dentro da caixa! Ele tentou levantar e não conseguiu. O pelo “tava” todo arrepiado e uma das patas estava pra cima, com as unhas de fora, e ele mexendo como se fosse arranhar!
Naquele dia que eu vi o Ralado no canto da rua e contei “pro” Pilha, eu não achava que ele ia conseguir desmorrer. Mas agora eu tô entendendo muita coisa! Foi por isso que o Pilha saiu correndo, e é por isso que o Pilha “tá” saindo mais cedo. Acho que ele que fez o Ralado desmorrer e “tá” cuidando dele, até dividindo a comida, e por isso que ele “tava” cheirando cola mais cedo, porque ele reparte com o Ralado e fica com fome! Tinha resto de comida e de cocô dentro da caixa. E ela “tava” fedorenta! Acho que o Ralado não consegue sair da caixa nem pra fazer xixi.
Eu voltei “pro” sinal e não falei nada “pro” Pilha. Não queria contar que eu fui bisbilhotar o segredo dele, mas não queria mentir “pra” ele. Sim, porque quando a gente esconde alguma coisa do amigo é igual mentir, né? Porque eu sei que mentira é tudo que não é verdade. E seu eu não conto alguma coisa, eu “tô” escondendo a verdade, né? Mas eu não sabia como falar, então eu quis pensar primeiro. Não sou bom nisso. Sempre que precisa pensar, quem faz isso é o Pilha!
O Pilha saiu cedo de novo. Eu sabia que ele ia ver o Ralado. Eu deixei ele ir na frente, e quando ele desapareceu na esquina, eu também saí. Mas eu primeiro fui em outro lugar.
Quando eu cheguei na árvore, o Pilha “tava” lá no altão, na caixa do Ralado. Mas com o Pilha lá, eu nunca tinha ouvido o Ralado fazer o barulho de riscar fósforo que fez “pra” mim. Daí, eu subi até o galho que sempre subo… e comecei ir mais alto. Lá onde “tava” o Pilha. Fiquei com medo que ele ficasse brabo por eu subir. Mas ele não ficou. Acho que o Pilha nunca ficou brabo comigo!
— “Êh, mané! “Tá” ficando corajoso?
Eu vi que eu “tava” mesmo. E agradeci no pensamento ao São Jorge por isso! Mas não fui até onde o Pilha “tava”. Só até onde a minha mão podia alcançar a dele.
— Toma Pilha, pega aí!
Eu estendi a mão pro Pilha, com o saquinho plástico que a Tia Zélia me deu com comida de gato. Foi lá que eu fui, quando saí da sinaleira, antes de “vim” “pro” parquinho.
O Pilha demorou “pra” entender. Mas quando entendeu, sorriu.
Eu não sou esperto como o Pilha… mas não demorei nadinha pra entender que tem sorriso, que abraça a gente mais apertado que os braços!
Luís Menna Barreto, em 1º de março de 2025
Referências:
*1 O “cachorro da pata torta” e o velho “Muleta” que o amiguinho do Pilha refere, são o Garrincha e o Clarêncio do conto “O Velho e o Garrincha”, que ainda será postado aqui no blog mennaempalavras, e também será publicado e em uma coletânea de contos, disponibilizado em livro.
**2 Vide a aventura “Eu, o Pilha e o Ranho”.
***3 Vide a aventura “Eu, o Pilha e o Uálquim”
****4 Aconteceu no capítulo 3 do conto “O Velho e o Garrincha”
*****5 Vide as aventuras “Eu o Pilha e o São Jorge” e “Um Conto do Pilha”
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