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Eles Estão Por Toda Parte

Foto do escritor: luís menna barretoluís menna barreto

Atualizado: há 12 horas

Eles Estão Por Toda Parte - Bora Cronicar
Eles Estão Por Toda Parte - Bora Cronicar

A primeira vez que eu vi um deles, eu estava no médico, na sala de espera! Na hora, não entendi muito bem do que se tratava, porque a gente nunca espera que eles estejam ao nosso lado… 

Não havia muita gente. Havia eu e mais três pessoas. A sala era pequena e havia cadeiras dos dois lados, encostadas em ambas as paredes. Havia seis lugares, dos quais quatro estavam ocupados. Naquela época, começo da década de 90, não havia smartphone. Quando muito, aqueles motorolas enormes, pesados, que quando tocava a gente tinha de abrir o flip do bocal de voz e puxar a antena. Numa sala de espera o que fazia passar o tempo eram as revistas antigas que sempre havia: “Manchete”, “Contigo" e, com muita sorte, “Veja”. Então, naquele tempo, realmente era mais difícil disfarçar. Alguns deles, não conseguiam.

Hoje, com smartphones, e-readers e nitendos portáteis, eles conseguem enganar-nos com mais facilidade. Mas ainda assim, às vezes, algum deles não resiste e então acontece! 

Consultórios médicos e odontológicos são os locais onde mais se tem notícias das ações deles. Relatos inúmeros dão conta de serem os locais onde mais houve ocorrências, onde mais eles se revelaram. Raros salões públicos tem registros deles em ação. Preferem agir em locais pequenos. 

A ação é, em princípio, discreta, quase furtiva. Mas do momento em que eles se sentem seguros a revelar-se, do momento em que decidem partir pra ação, não há o que os impeça. Não há, na literatura especializada sobre as suas ações, nenhuma notícia, absolutamente nenhuma, de que não tenham conseguido realizar seu propósito.

Se tu já passaste por esta situação e ficaste sem ação, paralisado, e, ao fim, apenas concordaste, não te envergonhes! Os especialistas explicam que esta é a reação (ou falta dela) de noventa e cinco vírgula quatro por cento das vítimas. Sentem-se constrangidas no início, uma paralisia perplexa ao ve-los em ação e então, a reação natural é concordar quando eles te encurralam. Tu não lutas contra eles. Não há o que os detenha. 

Às vezes agem solitários, mas é mais comum vê-los agindo em bandos. Eles percebem imediatamente. Está no instinto. Normalmente, já mantem os olhos fixos… ou ao menos dão olhadas furtivas, mas apenas no início. Até que simplesmente passam a encarar. Eles não combinam, mas é uma espécie de sentido coletivo deles: assim que o primeiro passa à ação, é apoiado pelos demais. Foi assim quando eu vi o primeiro: 

Ele estava, como eu iniciei falando, ao meu lado. Eu jamais poderia esperar. Quando eu cheguei, havia uma senhora sentada de costas para uma das paredes, ao lado de uma mesa onde havia revistas e, na parede, um quadro onde havia um barco lutando contra águas agitadas. Havia duas cadeiras vazias ao lado dela. Eu sentei quase na sua frente, no lado onde as três cadeiras estavam desocupadas. Não porque eu desconfiasse que ela fosse um deles! Era impossível desconfiar. Nós nunca os reconhecemos antes de ser tarde demais, antes deles entrarem em ação. Sentei na sua frente, porque pareceu o mais lógico e natural. 

Depois, entrou um senhor. Uns 40 anos. Bem vestido. Do tipo que tu olharias e poderias confiar, poderias perguntar as horas, puxar uma conversa, até falar sobre a última notícia que o Cid Moreira havia dado no Jornal Nacional! Como eu poderia adivinhar? Sentou-se bem ao meu lado, na minha direita, quase em frente à mesinha das revistas. Pegou uma “Manchete" e começou a passar as páginas. Eu até achei que ele havia levantado os olhos da revista uma ou duas vezes, mas não desconfiei de nada naquele momento.

Logo chegou um outro senhor mais idoso, talvez 60 anos. Sorriu. Cumprimentou a todos e falou que estava começando a ventar muito na rua, e achava que iria esfriar no final da tarde. Como eu poderia desconfiar deles? Nada dava a entender que estariam sequer juntos… como eu era ingênuo! Mesmo que não estivessem juntos, assim que o primeiro agisse ambos se uniriam. É instintivo deles! 

Foi então que o homem que havia sentado na minha direita suspirou olhando fixamente à frente. Baixou a revista. Tornou a levanta-la tentando disfarçar mas parecia ser mais forte que ele. Eu notei que ele estava quase ofegante. Um arrepio percorreu-me. Então, ele olhou para o senhor idoso que estava ao meu lado esquerdo e, depois, ambos olharam fixo para frente, para o mesmo ponto. Era tarde. Eu estava entre os dois. Não poderia fazer mais nada a partir daquele ponto! A senhora que estava na nossa frente notou, como eu, os olhares. Eu me apiedei, temi por ela. Então, a surpresa! Ela sorriu para eles e balançou a cabeça em cumplicidade, virando o rosto para o mesmo ponto! 

Foi com algum desespero que eu me vi cercado! E então, sentindo-se completamente seguros, depois de entenderem que os três estavam de acordo, o homem ao meu lado levantou-se e passou à ação. Eu congelei, constrangido. A recepcionista parecia anestesiada e não viu a cena, ou, talvez, já tenha visto tantas vezes que nem mais se importava. Aconteceu: o homem levantou-se, caminhou dois passos, colocou muito levemente dois dedos na parte externa da moldura do quadro na parede e empurrou alguns milímetros!

O senhor velho da esquerda olhou fixamente, em dúvida. A mulher de costas para o quadro levantou-se, foi até minha frente, quase sem se importar com meu constrangimento, e espremeu os olhos: 

— Mais um pouquinho para esquerda… não, foi muito… isso! Aí. Perfeito!

Então, sentaram-se os três, como se nada tivesse acontecido, todos satisfeitos e vitoriosos.

Eles são assim: não se constrangem! São aquelas pessoas que não podem ver um quadro torto na parede! Não importa se é a tua parede, a do consultório, a da estação do trem, ou das suas próprias casas! Eles simplesmente não conseguem conter-se! 

Eles são os portadores do transtorno obsessivo obsessivo obsessivo obsessivo compulsivo que não conseguem ver um quadro torto na parede que precisam arruma-lo! 

Ou eles arrumam, ou o mundo é que parece torto!

A propósito: na minha casa existem 15 quadros nas paredes, rigorosa e milimetricamente alinhados. 

No meu gabinete, no trabalho, há 9 quadros, mais 4 na assessoria, mais 3 na sala de audiências… Pense no meu desespero quando a Ana vem visitar-me!


Luís Menna Barreto, em 18 de junho de 2019


3 Comments


Luciane
Luciane
Feb 25

Me identifiquei demais! 🫣

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Tu és uma delas!!!!!!! Eu já deveria ter imaginado! Os quadros sempre estão alinhados!!!!


Da minha parte… continuo sendo uma vítima!!!!!!

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