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A Prisão do Rui Barbosa, do Ruela e do Merece

Foto do escritor: luís menna barretoluís menna barreto

Atualizado: 25 de fev.

A Prisão do Rio Barbosa, do Ruela e do Merece - Crônicas do Marajó
A Prisão do Rio Barbosa, do Ruela e do Merece - Crônicas do Marajó

— … tu tens que ir lá, Goela, pelo amor de Deus! Só tu pode resolver isso, vai lá!

Era a Milagres chorando as pitangas para o Goela. O Merece, seu filho, havia sido preso… de novo! Por briga… de novo!

— Tá doida que eu vou lá, Milagres?! Tu já não pediste pro Ruela ir?

Ruela era o filho mais velho da Milagres. Merece, o mais novo. Entre os dois havia outros cinco!

Houve uma briga no campo de futebol, durante o campeonato da cidade… daí, o Merece, que sempre foi esquentado, foi um dos que puxou a briga. A PM fez o de sempre: como o efetivo total disponível era de dois homens (50% do efetivo da cidade), ficaram só olhando. Viram quem começou e esperaram… quando os brigões começaram a cansar, eles entraram com o cacetete na mão e pronto! O pessoal mais esperto saiu correndo, mas a força policial foi direto em quem começou abriga e recolheram!

Daí que o Merece foi preso.

Quando chegou a notícia, à noitinha, para a Milagres, ela quase desmaiou, subiu a pressão, tiveram que abanar, dar água com açúcar, essas coisas… daí que a Milagres mandou o Ruela, filho mais velho, à noite mesmo, na delegacia, ver se fazia alguma coisa.

Quando o Ruela chegou lá, o delegado não estava. Estava só o Brédi-Piti (que é um preso que toma conta da delegacia quando está respondendo algum processo... e ele sempre está respondendo algum processo!) e o Tonelada, um dos policiais que prenderam o Merece. O carcereiro Fechadura tinha ido para o Canaticu*, numa diligência. Daí que o Tonelada resolveu ficar ali, esperando, porque não confia em preso cuidando de preso. 

Quando o Ruela chegou, pediu pra falar com o Merece, para ver se ele estava bem e saber o que havia acontecido. O Tonelada, foi estranhamente gentil:

— Ah, pois não, podes vir. — E foi entrando na carceragem, onde tem as duas celas da delegacia, uma de frente para outra com um corredorzinho no meio. O Tonelada foi na frente, abriu a cela e o Merece estava lá, com o rosto inchado da briga, deitado no papelão que é a “cama" daquela cela. O Ruela, vendo o irmão, foi entrando. Quando estava bem na porta, o Tonelada colocou a mão nas costas do Ruela, deu um empurrão nele e trancou a cela!

— Tá pensando que é colegial?, vindo buscar o irmãozinho que brigou? Vai ficar aí, pra aprender!

— Tá doido, Tonelada, eu não fiz nada, abre aqui!

— Espera o delegado chegar!

O delegado só voltaria na quarta-feira, e era domingo, ainda!.

Quando chegou a notícia que o Ruela ficou preso com o Merece, a Milagres foi levada para o hospital. Chamaram até a ambulância, mas o tempo que o Manobra, motorista da ambulância, levou para sair do açougue do Retalho, onde estava tomando uma, já haviam levado a Milagres num “carro de mão” (daqueles que os carregadores da beira usam para fazer os fretes do navio até os comércios!

Pois foi lá no hospital que apareceu o Rui Barbosa. Rui Barbosa não era nome, era apelido. Filho do Mariposa, comerciante que tem outras histórias que já contei (e algumas por contar), o Rui Barbosa, nascido João Paulo de Deus, resolveu que iria estudar direito. E foi-se para a capital. Em Belém, cursa direito e fica durante todo o período letivo por lá, voltando para o Marajó nas férias. Na primeira vez que voltou, já veio com um livro embaixo do braço: “Oração aos Moços” de Rui Barbosa (o original). E inventou de querer ler para os amigos. Na terceira linha, o pessoal começou a bocejar e no meio da primeira página alguém gritou: “cala a boca, Rui Barbosa”. Pronto: virou Rui Barbosa, o que acabou gostando muito! Estava, já, no sexto semestre de direito. E era sobrinho da Milagres. Foi ver a tia no hospital e ela logo pediu para ele ver se fazia alguma coisa pelo Merece e pelo Ruela. Lá foi o Rui Barbosa. 

— Boa noite, Policial. 

— Tá de onda comigo, Rui? Te conheço desde moleque e tu sempre me chamaste de Tonelada. O que é que tu queres, já?

— Falar com meu cliente.

— Teu o quê? 

— Meu cliente, Sr. Policial! O cidadão que está com a liberdade cerceada por ato arbitrário encontrando-se ilegalmente segregado.

O Tonelada não entendeu coisa nenhuma: 

— Tu estás querendo falar com o Merece?

— Isso, com o cidadão Virgílio Augusto de Deus Filho (era o nome do Merece), e seu irmão, primogênito.

O Brédi, que estava por ali, varrendo, deu uma risadinha discreta. O Tonelada ficou gentil de novo!

— Pois não, doutor, por aqui!

Ter sido chamado de “doutor" arrepiou o Rui Barbosa que sentiu uma indescritível emoção! Entrou garboso pelo corredor da carceragem. Tonelada abriu a Cela. Colocou a mão nas costas do Rui Barbosa…

… sim, isso mesmo! Exatamente: estavam presos, agora, o Merece, o Ruela e o Rui Barbosa. E a Milagres chorando para o Goela.

— … mas tu não mandaste também o Rui Barbosa lá na delegacia, Milagres?

— Foi, Goela… E agora estão os três presos por lá. Faz alguma coisa pelo amor de Deus!

— Vou fazer sim: vou é ficar longe da delegacia! Tu tá é doida de pensar que eu vou lá! Se o Tonelada já prendeu três, pra prender quatro é um instantinho! 

Mas, enfim… Milagres incomodou tanto o Goela, foi segurando a manga dele até o fórum, que o Goela disse:

— Tá, Milagres, vou fazer o seguinte: vou falar com o doutor. Ele que veja o que vai fazer!

A Milagres aparentemente se conformou com aquilo. Mas não foi embora. Foi para a praça e ficou no banco que fica de frente para a entrada do Fórum. 

— Doutor…? — Foi abrindo a porta e já falando sem pedir licença. Eu estava lendo um processo. Nem levantei a cabeça, mas levantei os olhos por cima do óculos.

— Doutor, a Milagres vai fazer onda. 

— Hein?

— Seguinte, doutor: o Merece brigou na bola e o Tonelada prendeu ele! aí a Milagres disse pro Ruela ir buscar e o Tonelada prendeu o Ruela! Daí a Milagres falou com o Rui Barbosa, e o Tonelada prendeu o Rui… ela vai vir aqui fazer onda.

Eu confesso que não entendi nada. Fiquei um instante olhando pro Goela.

— "Disk" a Milagres tá vindo aí, doutor. "Disk" tá sentada na praça esperando a Maria Sem Sossego pra ficar gritando “justiiiiiiiça" na frente do fórum, até o senhor fazer alguma coisa.

Ai, ai, ai… Eu lembro que o dia estava bem calmo no Fórum. Mal se ouvia as conversas da Tutela com a D. Boneca, na cozinha do Fórum, não tinha nenhuma audiência para aquela manhã… enfim, era um dia tranquilo. Então fiquei imaginando a Maria Sem Sossego gritando na frente do fórum, no sol, a manhã inteira, segurando um cartaz de alguém que tenha dado um litro de açaí para ela ficar gritando, e fiquei com os cabelos da nuca arrepiado (na nuca, ainda tenho uns cabelos)! Daí pensei que aguentar duas gritando na frente do Fórum seria demais!

— Chama o delegado!

— Tá pra Belém, doutor!

— Chama o Fechadura!

— Tá pro Canaticu!

— Chama o Tonelada!

— Doutor, o senhor me desculpe: o Tonelada prendeu o Merece; o Ruela foi lá, ele prendeu o Ruela;  o Rui foi lá, ele prendeu o Rui… vô nada, doutor! 

Ai, ai, ai….

Pensei na calma da manhã… imaginei a Maria Sem Sossego e a Milagres gritando na frente do Fórum… ponderei... e:

— Bora! Mas tu vais comigo, Goela!

Resolvi levantar e ir até a delegacia que ficava cerca de trezentos metros de distância.

O Goela caminhou todo percurso ao meu lado, com a cabeça toda em pé, cumprimentando quase todos com gritos… mas quando chegamos no portão da delegacia, ele foi ficando para trás, e não deu nem um pio.

Reconheci o Brédi Piti, que eu havia determinado a prisão por furto, varrendo a frente da delegacia. O Tonelada estava sentado, de olho no Brédi. Quando me viu, ficou em pé da maneira mais rápida que seus 120 quilos permitem!

— Doutor, ele está varrendo, mas estou de olho nele!

— Relaxa, Tonelada. Vim ver os outros. O…

— Merece, Ruela e Rui Barbosa! — O Goela falou por cima do meu ombro. Achei que o Tonelada fuzilou ele com os olhos.

— Tão presos, doutor!

— Eu sei, Tonelada. Quero falar com eles!

Foi então que o Tonelada mudou de atitude! Ficou gentil de repente:

— Ah, doutor, pois não, venha por aqui! — O Tonelada tirou a cadeira da frente e abriu passagem indicando onde era para eu ir. 

O Brédi Piti arregalou os olhos. O Goela nem passou da porta da entrada da Delegacia!

Quando o Tonelada pegou a chave da cela, os três começaram a falar ao mesmo tempo.

— CALA A BOCA! — Foi o Tonelada, com "delicadeza" gritado em letras maiúsculas! Até eu fiquei quieto naquele momento.

O Tonelada abriu a porta, e eu logo mandei os três saírem! Os olhos do Brédi Piti quase saltaram das órbitas. Nunca vi o Goela em silêncio por tanto tempo.

Aquele dia foi estranho! Por um momento, eu podia jurar que senti a mão do tonelada em minhas costas, quando eu estava na porta da cela! 

E nunca vi presos saírem da cadeia em tanto silêncio.


Luís Menna Barreto, em 7 de setembro de 2018


*Canaticu é um rio do arquipélago do Marajó, que leva a comunidades distantes até 12 horas de viagem de barco, partindo da sede do Município de Curralinho, na Ilha.

6 Comments


liu
liu
Feb 23

Como não rir ? Gente, passa as imagens na cabeça imaginando cada um deles. Só no Marajó que um preso fica do lado de fora varrendo rsrs

Se fosse uma peça de teatro iria tirar muito risos!! 😅👏

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Liu, que idéia..!!!! Quem sabe um dia alguma história do Marajó não ganha os palcos…?!

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Ah, amigo Luís que cabeça é essa a sua amigo?

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Eu sei!!!!!!!!

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